Sonhos para sentir por Tania Brandão


Delicadeza e ousadia, requinte e simplicidade – as palavras registram um exercício teatral surpreendente. Está sob o foco a busca de expressão de uma atriz, sob uma forma  no mínimo curiosa, nova, a montagem Sonhos para vestir, de Sara Antunes.  O uso da palavra exercício não é gratuito: seria interessante encontrar um nome novo para definir esta forma de estar em cena, em que a atriz se apresenta e se inventa como intérprete em parceria deliberada com o público, incorporando referências sentimentais de sua própria vida.  Seria uma espécie de acontecência cênica. Ou uma performance lírica. O texto, quase um roteiro ou esboço para a apresentação, é uma narrativa que resvala para o relato biográfico discreto, uma sugestão de arte pessoal, modalidade de trabalho praticada faz tempo nas artes plásticas. O truque, longe de impor uma performance subjetiva, uma exibição pessoal histriônica, reforça o teatro, permite uma atuação muito carregada de emoção forte, sincera; ele aumenta a intensidade da presença da atriz, combina interpretação e improvisação.
O ponto de partida é bastante singelo – uma mulher insone delibera que os presentes, a platéia, integram o seu sonho.  O subterfúgio tem diferentes funções: funciona para indicar  um lugar de atrito entre realidade e fantasia, para incluir os espectadores na ação e sugerir o início de um jogo. Não há, no entanto, confronto ou intimidação, pois o objetivo é tecer uma parceria-convite, a defesa da idéia  de que cada pessoa tem direito aos seus sonhos e deve ter a chance de expressá-los livremente. Esta construção do sujeito expressivo parece ingênua, mas não é superficial – em cena, a atriz faz o inventário, de forma um tanto cifrada, da relação com o seu pai, um poder que acionou o seu potencial de criação, pois ele buscou, segundo as suas lembranças mais remotas, mergulhar a filha em um universo de palavras e de poesia.
Memórias da infância, livre associação de idéias, liberdade do olhar poético para a vida e para o mundo formam um painel curioso, que se torna mais denso graças à música ao vivo, criada em sintonia com o fluxo da cena por Daniel Valentini, à iluminação sugestiva (Paulo Cesar Medeiros) e ao delicado cenário-instalação, de bordados, rendas e tecidos esvoaçantes, muito inspirado, de Analu Prestes. A concepção do espaço, marcado por tons, luzes, formas e matérias fortemente femininas, é ampliada pelos figurinos (Kabila Aruanda).  O caráter de exercício de interpretação se torna mais evidente por um detalhe que define radicalmente o conjunto: a direção é de uma atriz, Vera Holtz, e esta profissão também é exercida pela cenógrafa. Há, portanto, um triunvirato em cena, em um trabalho sutil, indicado para pessoas interessadas em pensar a arte. Trata-se de uma cerimônia singela de libertação coletiva da criatividade, em que se busca uma forte comunhão entre o palco e a platéia. A partir desta condição, parece natural a proposição delirante evidente no título – sonhos para vestir; eles  indicariam possibilidades de vida mais intensas, novas formas para cada pessoa deslizar, delicadamente, no mundo. 

  

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