Sonhos Para Vestir por Valmir Santos

Dirigir-se ao outro constitui prática e filosofia artísticas que Sara Antunes cultivou profundamente na cena do Grupo XIX de Teatro, do qual o espetáculo Hysteria (2000), revelado no mesmo Festival de Curitiba, é paradigmático. A interação permanece como sustentação no trabalho solo Sonhos para vestir, em que esse desejo de passagem da narrativa ficcional para o aqui e agora do espectador, em mão dupla, acresce um terceiro ponto de vista: o do documento pessoal. A morte recente de seu pai, um pensador, é um dos aspectos propulsores dessa criação a um só tempo elegia e chamado à vida em palavras e imagens.

Das palavras escritas pelo pai na barriga de sua mãe, na gravidez, até a própria imagem refletida no aparelho do hospital quando ele morre, cumpre-se um percurso de delicada intimidade pactuada com a maioria do público em questão de minutos. As perdas, afinal, humanizam. É nesse ponto ambíguo da identificação que a proposta poderia desandar em terapia de grupo. Sara não perde o eixo poético/performativo concebido ao lado da diretora e também atriz Vera Holtz, além da ambientação cenográfica discreta de Analu Prestes e da permeabilidade musical de Daniel Valentini a perpassar toda a apresentação.

Uma narradora de voz cadenciada e olhar cúmplice conduz com habilidade o jogo de quimera com palavras lançadas ao acaso, por ela ou pela plateia, numa complementaridade que faz das chamadas “hipóteses radiantes”, diásporas da subjetividade, justo a concretização da ponte que o projeto ambiciona. Nesse lugar da escuta mútua, a emoção de lidar incorpora-se como uma textura a mais no ir e vir por entre objetos, tecidos, fios de Ariadne dispostos na arena do sempre memorável teatro Paiol. Descartando o uso mecânico de projeção, essa dramaturgia cênica mora nos detalhes e possibilita aos interlocutores experimentar o sentimento da clareza diante do inefável.

Negrinha, o monólogo anterior, adaptação do conto homônimo de Monteiro Lobato, já dava notícias da capacidade da intérprete de envolver o público representando uma criança vítima de abusos no período da escravidão, evitando maneirismo a todo custo. Sob a direção de Luiz Fernando Marques, o recorte histórico permitiu caracterizar o espaço cenográfico, a luz esculpida por velas, o figurino em renda da personagem. Em Sonhos para vestir, que sublinha um norte autoral após a sua saída do Grupo XIX, Sara Antunes se desnuda. O fator histórico volta-se para a biografia de quem está à boca de cena ou avança para a arquibancada, dissolvendo a noção da máscara e tocando susceptibilidades.

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