Um Olhar Tecido em Sonhos por Flávia Marquetti

Sara Antunes, que já nos havia encantado ontem com Negrinha, hoje nos levou ao mais delicado arranjo de lembranças, desejos e hipóteses construído de/sobre palavras. Interagindo com o público e tecendo a partir desta intervenção toda a “dramaturgia” do espetáculo, Sara demonstra, como já o havia feito no espetáculo anterior, um domínio absoluto sobre este difícil e arriscado jogo. Como nos antigos desenhos para bordar, ela preenche, a partir de um contorno delineado, todo o espetáculo.

O texto, como a cenografia e o figurino, explora as transparências, deixando ver siluetas de encontros e despedidas. Em cena a iluminação feita por pequenas lâmpadas encapadas por tecidos bordados desenha sombras e lembranças. Momento mágico é o do primeiro vestido tecido pela mãe, com o qual a personagem, já adulta, se cobre, vestindo-o pela cabeça – parto às avessas – o desejo de retornar a infância, a um tempo de ilusões e alegrias. Como em um passe de mágica, a criança se faz mulher, o pequeno vestido se transforma em véu nupcial, cobrindo seus cabelos e ligando dois momentos diversos: o agora ao início da peça quando, com o auxílio de alguém da platéia, ela se desvela para a noite de núpcias, desenrolando uma fita dourada que traz presa à cintura. Fundindo filha, esposa e mãe, a um só tempo todos esses papéis femininos estão ali presentes.

Não é sem intenção que o primeiro vestido está em uma grande caixa prateada, que a personagem acaba por ocupar, como o vestido, ela é um presente, e aqui a ambiguidade das palavras ganha valor redobrado: presente/mimo e presente/momento atual, ambos confrontando-se com o passado e as lembranças. O magnífico painel bordado, que é, também, desvelado ao final da peça, ecoa na pequena e frágil boneca de papel “presa”, suspensa em um cubo transparente, símbolos desta delicadeza, desta feminilidade, capturada pelo e no tempo.

A peça, riquíssima de elementos femininos, como a jarra, a bacia e a caixa de prata, a água, os tecidos e os véus, recorta e insinua esse universo sinuoso e circular no qual vida e morte se confundem, oferecendo outro ângulo para se ver/pensar o mundo. A palavra poética de Sara Antunes, somada ao cenário mágico de Analu Prestes e à direção delicada de Vera Holtz confirma a veracidade da frase de Guimarães Rosa: “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”.

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