Sara Antunes, que já nos havia encantado ontem com Negrinha, hoje nos levou ao mais delicado arranjo de lembranças, desejos e hipóteses construído de/sobre
palavras. Interagindo com o público e tecendo a partir desta
intervenção toda a “dramaturgia” do espetáculo, Sara demonstra, como já o
havia feito no espetáculo anterior, um domínio absoluto sobre este
difícil e arriscado jogo. Como nos antigos desenhos para bordar, ela
preenche, a partir de um contorno delineado, todo o espetáculo.
O
texto, como a cenografia e o figurino, explora as transparências,
deixando ver siluetas de encontros e despedidas. Em cena a iluminação
feita por pequenas lâmpadas encapadas por tecidos bordados desenha
sombras e lembranças. Momento mágico é o do primeiro vestido tecido pela
mãe, com o qual a personagem, já adulta, se cobre, vestindo-o pela
cabeça – parto às avessas – o desejo de retornar a infância, a um tempo
de ilusões e alegrias. Como em um passe de mágica, a criança se faz
mulher, o pequeno vestido se transforma em véu nupcial, cobrindo seus
cabelos e ligando dois momentos diversos: o agora ao início da peça
quando, com o auxílio de alguém da platéia, ela se desvela para a noite
de núpcias, desenrolando uma fita dourada que traz presa à cintura.
Fundindo filha, esposa e mãe, a um só tempo todos esses papéis femininos
estão ali presentes.
Não
é sem intenção que o primeiro vestido está em uma grande caixa
prateada, que a personagem acaba por ocupar, como o vestido, ela é um
presente, e aqui a ambiguidade das palavras ganha valor redobrado:
presente/mimo e presente/momento atual, ambos confrontando-se com o
passado e as lembranças. O magnífico painel bordado, que é, também,
desvelado ao final da peça, ecoa na pequena e frágil boneca de papel
“presa”, suspensa em um cubo transparente, símbolos desta delicadeza,
desta feminilidade, capturada pelo e no tempo.
A
peça, riquíssima de elementos femininos, como a jarra, a bacia e a
caixa de prata, a água, os tecidos e os véus, recorta e insinua esse
universo sinuoso e circular no qual vida e morte se confundem,
oferecendo outro ângulo para se ver/pensar o mundo. A palavra poética de
Sara Antunes, somada ao cenário mágico de Analu Prestes e à direção
delicada de Vera Holtz confirma a veracidade da frase de Guimarães Rosa:
“todo abismo é navegável a barquinhos de papel”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário